05 outubro 2011

Os efeitos políticos do perdão em Hannah Arendt

Perdão é um termo que tem relação essencial com o tempo e com a ação. Ele é ligado a um passado que não passa, uma experiência irredutível, a algo que não existe, mas mantém-se presente. Há significações várias para o perdão, como em seu uso cotidiano, quando se pede perdão a alguém por algum incômodo causado, até seu uso mais duro, intenso, quando se pede perdão em nome de um Estado responsável por tortura e assassinato.
Considerando diferenças de ênfase na justiça ou na política, o termo perdão tem sido globalizado na cena pública contemporânea em diversas ocasiões e, inclusive, em países sem tradição religiosa cristã. Talvez o mais célebre tenha sido o da África do Sul, na passagem do apartheid para a democracia, em 1994, por ter inaugurado um novo modo de realizar as transições de saída de regimes autoritários, conhecido por justiça transicional e marcado pela existência da Comissão de Verdade e Reconciliação.
Tais acontecimentos nos levam ao questionamento sobre o estatuto do termo perdão nas democracias contemporâneas. Teria o perdão um caráter político ou sua utilização demonstra um abuso na aplicação do termo? Em outras palavras, o termo perdão tem em sua estrutura a possibilidade de ser usado na resolução de problemas coletivos e sociais ou tal fato se configura como uma ingerência de assuntos religiosos e / ou valores privados na esfera pública?
A ligação entre uma concepção plural e discursiva da política e a experimentação do uso público do perdão aparece com clareza na obra de Hannah Arendt, no livro A Condição Humana. Juntamente com o trabalho e a fabricação, a ação compõe a trilogia das atividades humanas, utilizadas pela autora para compreender as distinções entre a violência, a força e o poder. Enquanto o poder define-se pela ação política, a violência é trabalho, fabricação, dominação. A política é a ação que surge da reunião dos singulares, formando uma pluralidade de iguais, sem hierarquia alguma, e que existe somente no momento do encontro, nos debates, discursos e gestos aí encenados.
Na política, segundo Arendt, temos atores anônimos que produzem ações imprevisíveis e irreversíveis. Todo ato já iniciado é irreversível – diferentemente dos processos de fabricação e trabalho. E toda pluralidade, em sua riqueza de singularidades, é imprevisível. A política está entregue inteiramente a sua fragilidade, a qual ela somente pode ultrapassar por meio de dois recursos internos à própria ação: face às incertezas do imprevisível há o poder da promessa, que liga o ato presente a um compromisso no futuro; face ao caráter irreversível do já feito, há o poder de perdoar, que desliga o agente do evento passado e possibilita o surgimento da nova ação.
O vínculo entre política e perdão fica explícito na formulação de Arendt que vincula este ato aos processos institucionais do ordenamento: “os homens não podem perdoar aquilo que não podem punir, nem punir o que é imperdoável”. Segundo ela o perdão é o oposto à vingança; esta seria a reação natural a uma violência sofrida e, de certo modo, é esperada e pode ser até mesmo prevista e calculada. Ao contrário, o perdão jamais pode ser previsto, é a única reação que age de novo e inesperadamente.
A argumentação nos remete a duas idéias comuns ao pensamento de Hannah Arendt: na primeira, o perdão deve ser uma possibilidade humana, portanto, vinculado às relações sociais; na segunda, a faculdade humana de perdoar corresponde, em seu contrário, à possibilidade de punir.
O limite do conceito de perdão em Hannah Arendt parece encontrar-se no fato de que ao envolver um terceiro na relação entre a vítima e o ofensor – falamos do ordenamento jurídico e político – o perdão tende a perder sua capacidade de desligar o agente da política do evento passado, transformando-se em um ato de fabricação, de construção artificial de um processo que visa um produto final. Deixa de ser o livre diálogo entre seres singulares e livres.
O ser do perdão, sua ação e seu movimento, existe enquanto articulação temporal do irrecusável e irremediável passado, o passado que não cessa de passar para o sujeito vítima. Para que o perdão possa se constituir, não é suficiente a existência de um evento passado. É preciso mais. Este fato ocorrido, algo com lugar e momento diferente do perdão, deve ser mais do que algo. Ele deve conter um algo, esta coisa, objeto, que alguém fez a alguém, ou um algo que alguém mal fez a alguém, um mal envolvendo um ofensor e uma vítima. É necessário que o mal feito tenha consequências hoje, que o fato não seja impessoal e que envolva os sujeitos, os personagens do perdão.
Se o perdão em seu uso fraco, no cotidiano, é direcionado a alguém com o qual se tem certa intimidade (familiar, amorosa, comunitária), perde-se a marca do outro a quem se pede perdão; a proximidade provoca uma fusão, anulando a distância necessária para a reflexão sobre a alteridade, a ofensa e suas consequências. O perdão cotidiano caracteriza-se mais como uma etiqueta, a pequena ética de um grupo social, entre pessoas que se identificam. No perdão em sentido forte, o perdão coletivo, a implicação ocorrerá em uma série de procedimentos, instâncias e instantes nos quais o outro, aquele a quem se dirige o pedido, está a certa distância, obrigando o requerente a nomear o sujeito, a ofensa e a qualidade de sua ação. E o sujeito, o que pode ou não perdoar, envolve-se em reflexões sobre a presença do trauma passado no presente de suas ações e sobre as implicações futuras do perdoar.
O perdão envolve dois lados de um mesmo ato, o movimento do ofensor, em direção à confissão e ao arrependimento, e o da vítima, decidindo se perdoaria o ato sofrido. Quando um terceiro elemento entra na mediação entre os dois, como no caso de uma Comissão da Verdade ou em processos de reconciliação nacional após regimes autoritários, a questão se coloca fora da tradição do perdão e qualifica-se como anistia, reconciliação, indulto, ou seja, um ato político ou jurídico. A anistia em troca da confissão não deve ser confundida com o perdão, pois este deveria envolver somente dois personagens singulares: a vítima e o culpado. Toda vez que o perdão estiver a serviço de uma finalidade, como a pacificação nacional, não se estará, segundo Arendt, praticando uma ação política, mas utilizando o processo como meio para fabricar um produto final.
Temos uma série de questões para reflexão: pode-se, tem-se o direito, é conforme o senso de perdão um coletivo, o Estado, pedir perdão a outro coletivo, as vítimas, por um crime passado; a instituição política pode, em nome de outro coletivo, pedir perdão a um coletivo passado que não está mais presente – trata-se da ausência das vítimas mortas ou desaparecidas; pode pedir perdão pelo crime e não para o criminoso; há a possibilidade de o criminoso pedir perdão ao coletivo e não ao ofendido? Considerando ainda os questionamentos sobre o acordo ou não destas demandas, teremos uma ampla gama de alternativas para o uso, no sentido pragmático, do termo perdão.
Segundo Arendt, o perdão é uma experiência que não se pode ter sem os outros, sem a presença da pluralidade, jamais um ato de si consigo mesmo. Argumenta a autora que o perdão, cuja primeira formulação relacionada à esfera dos assuntos humanos foi a da religião, deve ser concedido porque o ofensor não sabe o que faz e, com base nesta idéia, defende que no caso extremo do crime e do mal intencional, como no caso dos crimes nazistas, os criminosos sabiam o que estavam fazendo e, por isso, não seriam autores de atos passíveis do perdão.

Publicado na Revista Filosofia, abril de 2011.